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domingo, 9 de outubro de 2011

Personagem de rua

À sombra da praça

Às 15h30 da tarde a Praça da Matriz não é lugar de criança. Ocupam  brinquedos e bancos prostitutas que negociam o prazer, sujeitos que abraçam garrafas de cachaça, dependentes químicos ávidos pela nicótica, álcool e a pedra madita,  crack. A praça, em frente ao colégio, não acolhe qualquer estudante. Não há um fio de vida jovem saudável nela. Defronte está o setor de inteligência da Brigada Militar. Policiamento ostensivo. O nome não ostenta qualquer confronto. Policiais militares cruzam o local, conduzindo-se altaneiros fora da praça, nem com o “rabo” do olho notam os personagens locais. Disfarçam. Ali, Júlia Teresinha Semler (40) disfarça o tom da vida. Em latim, o nome de batismo indica alguém cheio de energia. Não é assim com Julia, a “Neca” da Praça da Matriz.  Há algum tempo, deixou de morar na rua. O marido e a irmã lhe resgataram dos becos e do coreto da praça para abrigá-la em uma casa no Bairro Hidráulica. Foi, mas não cessou de fumar a pedra da ilusão. O crack a atormenta há quatro anos. “Eu penso o que está havendo com minha vida. Eu não tenho forças, não consigo ir para frente”. Neca chora.  Conhecidos que avistam a cena do outro lado da praça, gritam: “Não te abala, Neca.” Mas Neca, pensando ser sarcasmo, porque na vida de rua nada é de verdade, rebate sem pensar:  “Vai, meu”. O verde, a sombra das árvores, a imagem de certa forma limpa e aprazível da natureza lhe da esperança. É ali que espera por uma internação. “Estou para me internar, estou esperando vaga na fazenda”.  Quando Neca fala, uma janela se abre nos lábios. Pelo menos quatro dentes sumiram do dia para noite. Ela não sabe em que momento os perdeu. “No outro dia levantei, fui olhar na boca e os dentes não estacam mais. A ponte caiu porque eu estava muito drogada.” Neca não furta, pede. Neca não se mistura com os dependentes da praça ou da ciclovia. Mantém sua privacidade no anonimato da área de lazer.


Publicado em setembro no jornal O Informativo do Vale

 Há tempo não conversa com as duas filhas que estão sob os cuidados de uma instituição.  Sem dente e sem documento, reza todo o dia para deus lhe ajudar.  Neca tem medo que o crack seque seus pulmões. “Eu estou esperando (uma vaga). Uma hora eu vou morrer.” Não faz o estereótipo do viciado abusado, amoral e sujo. É desleixada, mas educada. “Aqui todo mundo me adora”. E se apega a esse fio de orgulho como se fosse a ultima autoestima de sua vida.  Na praça, ela permanece do meio-dia às 17h. Diz que se ficar em casa pensa bobagem.  Ali, pelo menos durante cinco horas, seus pensamentos não sejam tão dolorosos. Mas ela sabe que isso também é ilusão, como também o é o prazer ilusório da pedra. Percebe que precisa de mãos que lhe agarrem e se agarra em qualquer estranho que possa representar auxílio. “Se vocês conseguirem uma internação para mim...”