segunda-feira, 30 de maio de 2011

O preconceito nosso de cada dia

Fiz uma matéria com a Loira da Bicilcleta. O nome dela é Traudi, tem 45 anos e pedala 20 quilometros por dia. Há cinco anos ela caiu na vida, virou prostituta mesmo, com os cabelos chamativos e a malha puída, ela não ganha muito nos seus miserentos dias de meretriz. Traudi, meretriz triste e feliz, estuprada aos 11 anos e prostituída aos 40 anos. Rendeu uma página. Penei para conseguir liberar a matéria no jornal. Existia o temor de que a reportagem poderia ser uma apologia a profissão. Como se a profissão mais velha do mundo precisasse de apologia. Cair na vida nem sempre é fácil, exige peito, se me permitem o trocadilho e uma boa dose de coragem para enfrentar os puritanos.
A matéria foi publicada no sábado, dia nobre para leitura de textos especiais: 48 horas depois, o burburinho está instalado: alguns gostaram da reportagem, outros não. E são estes que vociferam e ligam para a redação a fim de saber porque o jornal fez uma matéria desse estilo. Eu explico aqui: eu acho que os jornais precisam cada vez mais de vida real, menos de pompa. Menos de fontes oficiais. A vida anônima, aquela das ruas é que palpita no seio de cada ruela. Não quis apologizar nem demonizar. Só quis apresentar os fatos numa linguagem eloquente e acessível. Se faz mal para adolescentes lerem a matéria? Não. Eu recomendo a leitura. Fiz minha filha de 11 anos ler e não tenho medo que ela vá partir para a prostituição por isso. Eu tenho medo é dos papos no MSN, das fotos que se envia pelo Orkut, dos papinhos adolescentes travados no recreio da escola pública ou particular. Eu tenho medo é do preoceito desenfreado desta gente que vive no terceiro vale mais fértil do mundo e sob a aura de preservar as tradições, quer que a gente continue num jornalismo morno, que não aquece nem esfria nada. Que não humaniza, que nao tem cheiro, nem gosto ou sabor. Eu tenho medo é dos vereadores, que querem aumentar sua horda. Querem ser 15, em vez de dez e nenhum deles foi na audiencia pública promovida pela prefeitura para prestar contas do que gastou. Eu tenho medo é do ostracismo no qual a sociedade mergulhou, tanto pela função social que sempre foi inócua quanto pela função política, que nunca existiu.
Eu prometi, quando me formei em jornalismo, buscar desafiar as verdades inabaláveis que teimam em cercear nosso caminho. Eu prometi, não esperar cansada a fúria do algoz, nem baixar a cabeça diante das mordaças, mas lutar sempre pelo ser humano, pautando minhas ações na consciência, na ética e na justiça, por mais difícil que possa ser.
A loira da bicicleta me deu flores, em retribuição à matéria. Eis o click!
Eu prometi: "Embora ameaçadora a escuridão, fazer do jornalismo uma ferramenta, uma espada se for preciso, para que minhas palavras não nasçam mortas e o destino não se torne preciso. Para que minhas noites sejam tranquilas e que esta noite não seja em vão. Eu jurei e ainda juro"

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Testemunhas do leito zero

Tudo aconteceu rapidamente e sem prévia negociação. O celular tocou e eu atendi. Uma hora depois, já estava dentro da sala de cirurgia, esperando para assistir um homem ter seu crânio aberto com bisturi e ver o lado mais interno do ser humano. Aquele que a gente nunca vê, a não ser os médicos. A matéria era clara: mostrar a agonia de pacientes que esperam leitos de UTI. Um fato recorrente na região, mas dessa vez, a reportagem foi chamada para assistir "in loco" um paciente que não devia estar na cirurgia, porque ele não devia ter dando entrada no hospital da cidade. Não havia leito para ele. Em palavras toscas, o "paciente foi enfiado goela abaixo" pelo sistema. O sistema, aquele no qual eu, você e o João do Morro 25 estamos inserido. Aquele, único da saúde brasileira.
Eu e a fotógrafa Lidiane Mallmann repetimos a parceria. Jornalista e fotógrafa a postos. Logicamente consideramos um "privilégio" ter estado lá, naquela hora e dia e local. Desmistifiquei muitas coisas dentro daquela sala. Primeira delas: médico atende celular sim, dentro da sala de operações. É algo meio surreal, mas é tão normal quanto um padeiro que faz seu trabalho. As pessoas conversam, fazem observações. Era meio dia e o medico brincou. "Perdi o sorteio do bife em casa", enquanto costurava a cabeça do paciente. A Lidiane pensava. "Nesse momento ele é Deus". Ele detinha em suas mãos o poder de dar vida ao jovem ou de sufocá-la para a eternidade. Só que vê, quem olha bem naquela hora, percebe a magnitude do ato. O poder que emana de um neurologista, ou cardiologista. Alguns médicos "istas".
Foi fascinante pelos detalhes. O crânio sendo aberto, o osso sendo cortado, o hematoma sendo drenado. Mas antes de tudo isso, a preparação. Nada pode dar errado em nenhum átimo de tempo. A sala de cirurgia tem duas cores: verde e azul. Nas pessoas com uniforme verde, você pode tocar. Nas de azul, jamais. E nem nos panos azuis. Somos povoados de bichos, de vermes invisíveis (e ainda queremos ser glamourosos). Na hora da cirurgia, a assepsia é total. Pessoas de azul vão tocar diretamente no paciente, por isso são totalmente higienizadas. Elas não poder mexer nem nas calças que estão caíndo. Se isso ocorrer, os verdinhos entram em cena e levantam o cós da calça. Mas o médico de azul: never. Tudo isso é para evitar infecção.
Algo que causou impacto: os panos que estão na cabeça do paciente, são costurados na pele do crânio. É uma medida de proteção para que eles não escorreguem. Nenhum detalhe escapa, porque se escapar, o paciente pode morrer e o médico, ser acusado de negliência. A vida é fascinante. A  luta para manter a vida palpitando, mais ainda. E hoje eu agradeci por ser jornalista. Minha profissão me leva a locais que nenhum turista com 200 mil na conta bancária consegue ir. Ele pode viajar a Grécia, mas só eu e a Lidi vimos um maestro orquestrando a vida.

terça-feira, 24 de maio de 2011

O essencial é invisível!

Há meia hora minha filha chorou. E foi o choro mais lindo de todos. Eu fiquei tão feliz. Os olhos vermelhos lacrimejando me deram orgulho. Ganhei na loteca sem nunca jogar. Marianna terminou de ler as 94 páginas de O Pequeno Príncipe e emocionou-se como eu nunca a vira sentir-se assim em filme algum. Foi um livro que fez isso. Não é qualquer livro, já que Saint-Exupéry foi lido por milhões de pessoas em 80 línguas diferentes e todas elas tiveram a capacidade de emocionar-se com o principezinho. Por muito tempo eu guardei esse livro no roupeiro e tentei dá-lo a ela. Mas ela folheava, até tentava relancear algumas páginas, contudo, não ia adiante. Desta vez ela mesma tomou a frente de lê-lo e ao finalizar as páginas, chorou em borbotões. Ao sentar com ela e relembrar dos melhores lances da obra, também chorei. O Pequeno Principe devolve a cada um de nós o mistério da infância. A linguagem acolhe e tudo isso começa no prefácio da obra: "Todas as pessoas grandes foram um dia crianças, mas poucas se lembram disso."
Infância é também o prefácio da vida. Não dá para sentir pulos no coração com frases que se tornaram manjadas nas dedicatórias das misses, mas que significam profundamente um modo de existência essencial: "Só se vê bem com os olhos do coração. O essencial é invisível aos olhos." Ou essa: "Você se tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Se chegares às quatro, desde as três começarei a ser feliz."

Marianna: cativada pelo livro
 Mas minha filha começou a chorar na página 93: "Esta é para mim a mais bela e a mais triste paisagem do mundo." E quando ela chorou eu sorri, porque ela descobriu a emoção do livro. E eu chorei por ela ter chorado de emoção. E eu chorei porque agora ela me entende um pouco mais. E eu chorei porque minha alma sorriu. E nenhuma pessoa grande jamais entenderá que isso possa ter tamanha importância!

segunda-feira, 23 de maio de 2011

O que um boato não faz

Mora na Espanha, é traveco de sucesso e segundo os boatos, tem uma piscina que faz inveja a muito empresário tubarão. Tem tantas atribuições que nem sabe porque virou puta. Mas já que virou, é melhor sentar na cama e fazer a  fama. E cá prá nós, Luiza Marilac está bombando na web. O vídeo caseiro virou marketing viral: mais de um milhão de acessos, um texto simples mas muito argumentando em cima de ideias como diria - palpáveis e populares. Marilac conseguiu o que muito artista que está há anos nos tablados ou na sétima arte ainda não conseguiu. Ser visto, comentando, ser replicado por esse vasto brasil cheio de rincão. Ela até pode pagar peitinho no video. O Bolsonaro ou o pastor podem querer convertê-la, como perguntou a inadequada apresentadora do.Superpop. E nós, que temos nossos Bolsonaros enraivecidos aqui no Vale do Taquari,  temos de vê-los engolir redondo essa "bicharada" saliente que ganha adeptos com a midia alternativa da internet. Alternativa não, virou primeira mídia. Aquela que revela os anônimos. Que vislumbra os deslumbrados, que coloca nos holofotes as minorias. A mídia feita de bordões e chavões. Luisa, a Marilac, ganhou o mundo com um texto simples, mas que cola na mente. "E teve boatos que eu estava na pior". Eis todo o texto que ela deve ter decorado em quinze minutos ou feito de sopetão na hora da gravação artesanal.

"Neste verão decidi fazer algo de diferente.  Vou ficar em casa, curtir minha piscina. Beber meus "drink". Dividir com vocês momentos meus. A água está geladíssima...chuáaaaaaaaaaaaaaa...E TEVE BOATOS QUE EU ESTAVA NA PIOR. SE ISSO É TA NA PIOR...P...RRA...O QUE QUER DIZER TÁ BEM (diz ela depois de quase se afogar na piscina, mas sair com toda pompa e circunstância).

O bordão virou hit..Po, Po, Po...ôrra, ôrra..remake super comentado e tocado nos bailes funks. E tem boatos que aqui no Vale do Taquari, tem gente fazendo igual.

domingo, 22 de maio de 2011

Sites de namoro

Gente: percorrendo esse vasto mundo virtual, encontrei na internet dois sites opostos. Um que so cadastra pessoas bonitas e outro que so cadastra pessoas feias. Ambos estão em operação no Brasil e são para solteiros. Se você quer testar seu "indice" de beleza, experimente mandar uma foto para http://www.beautifulpeople.com/ Durante dois dias os integrantes "te analisam". se vc for lindo, vc ingressa no Olimpo. Se for feio, solamento, vc é rejeitado, eles te dão um nao bem redondo na cara. O site vem com o apelo: "onde todos são realmente lindos".  Por dias eu me segurei para não fazer o cadastro. Não queria entrar na nóia de ser rejeitada. Mas a curiosidade foi maior. Ah, não, peguei uma foto que achei passável e envieu e durante 48 horas fiquei na expectativa. Os membros podem te dar a chave do site te elegendo como "bonito" ou "nao, absolutamente não". Meus caros amigos, eu não passei no teste. Que desapontamento. Por mais bizarro que seja um site só para pessoas bonitas, você se sente a pior bolacha do pacote sendo enjeitada desse clube.
Hoje deparei com outro site, mais bizarro ainda. Mas mais engraçado. Só que não me atrevo e não quero entrar lá dentro. O portal http://www.theuglybugball.com/ lida só com os esteticamente prejudicados. O site é exclusivamente para os feios e não aceita pessoas bonitas. Tem como slogam: bem-vindos a realidade. O site tem bons argumentos para arrebanhar metade da população mundial: segundo diz, metade das pessoas são feias. Agora veja essa: metade dos feios tiveram uma vida dura e difícil, portanto, se esforçam mais para serem atenciosos. Uma pesquisa também provou que eles se empenham mais na cama. Mais de 7 mil pessoas curtiram a página no Facebook. Ah, gente, nesse site eu não vou tentar entrar. Vai se sou selecionada!

quarta-feira, 18 de maio de 2011

A lógica da minha filha


Mundo, mundo, vasto mundo infantil! A lógica da minha filha me assombra devido a verossimilhança com minha forma de pensar. Dizem que a fruta nunca cai longe do pé. É bem verdade.

Hoje ao meio dia, minha filha chega da escola com a nota de Geografia. Ela me mostra a prova com sorrateira fingidez. Tirou 7,5. Eu pergunto: filha, o que foi que tu errou?
Ela me diz: mãe, eu nao sabia essa resposta e improvisei. Ela então me conta que a pergunta era bem prática: Qual o nome dos brasileiros que moram no Paraguai? Sem saber que os "brasiguaios" invadiram as terras vizinha, opta pela resposta inusitada e lasca uma tipica resposta pitônica:  "muambeiros". Claro que a prova vem com um xis bem grande riscado em vermelho e ela me justifica: ah, mãe eu sei que lá tem muamba.
Então eu vi tudo: quem sai aos seus, nao degenera. Não sabia se eu ria ou chorava. Prendi o grito, prendi o riso, dei meia volta e saí.  No caminho vim pensando, minha filha e o termômetro da escola pública. Uma menina nota 7,5 nem a melhor, nem a pior...mas é criativa e se utilizasse respostas criativas para se dar bem na vida, com certeza se formaria com distinção. Em termos de criatividade, o brasileiro é "hour concour". Mas eu quero que minha filha seja nota 9,5 para competir com os alunos do Alberto Torres. Ela bem que poderia improvisar menos e estudar mais.  Se a fruta não cai longe do pé, existe sempre a esperança de que com as gerações, o DNA se aperfeiçoe: é a tal da eugenia, da qual queria que Marianna tivesse o privilégio te ter sido sorteada.


sábado, 7 de maio de 2011

Paciência no mundo da emergência

A aflição e a pressa dentro de um mundo em que ninguém quer entrar, mas que engole usuários que padecem na fila. O drama de pacientes e médicos que são utilizados como para-choque de um sistema que gera reclamações. O SUS. A vida e a morte dentro do pronto-socorro.

A equipe do jornal O Informativo atravessa a noite na emergência do Hospital Bruno Born e acompanha passo a passo a rotina de um médico plantonista.

A missão inicia às 19h30 da sexta-feira. Enquanto os trabalhadores voltam para casa e se preparam para o fim de semana, o médico Fábio Fraga (41) enfrenta mais um plantão de 12 horas. Ele é o coordenador do setor de emergência. Dará retaguarda a acidentados,feridos e alcoolizados. A sexta-feira é longa e por estatística, promete movimentação, a juventude sai para as baladas, ocasionando demanda no serviço. Esta é a sétima noite consecutiva de seu plantão. Durante a semana as horas de sono são escassas, mas ele tem de se manter alerta. Ainda não sabe, mas daqui a duas horas terá de salvar da morte um homem com água no pulmão.

Fraga é um “rato” de hospital. Na faculdade freqüentava casas de saúde perscrutando doenças e pacientes, assistia à série Plantão Médico e almejava ser um deles. Passou em uma universidade federal. Durante anos foi para as aulas com o mesmo sapato, os recursos eram escassos, mas o foco estava na futuro. Ao se formar, vestiu a beca e passou a ser chamado de doutor. Há dois anos, vara as noites no Hospital Bruno Born.

Enfermeiros, médicos e pacientes fazem parte de um sistema complicado e paradoxal que determina ter paciência dentro de uma emergência., que não se não se resume apenas ao Sistema Único de Saúde. Está dentro de uma conjuntura chamada Brasil, onde pouca coisa funciona para o usuário da saúde.

No país, pessoas agonizam esperando tratamentos. Em Lajeado médicos da emergência recebem R$ 55 reais a hora para atenderem no pronto-socorro mas não querem ser plantonistas pela batelada de processos a que estão expostos. O sistema reflete neles: Pessoas revoltadas que esperam meses por uma cirurgia pelo SUS e filhas apavoradas com a excruciante dor da mãe estão dentro do enredo. Não é a pressão do trabalho que aflige os médicos. Eles aprenderam na faculdade a trabalhar sob pressão. Mas a ineficiência do sistema chega a ser indecente. A impotência de estar de mãos atadas e de ser julgado culpado por isso, aflige os profissionais. A vida dentro do pronto-socorro é marcada pela frustração de médicos e pacientes.

19h30 A morte dá entrada

Pelos corredores do hospital, o médico Fábio Fraga, encontra tempo para filosofar sobre a vida e a morte e utiliza a tecnologia do iPhone para ler artigos médicos na internet e interagir em redes sociais. Apesar da popularidade na internet – Fraga tem 1.222 amigos no Facebook - o ciclista Lauro Schweitzer (56) que está na cama da emergência jamais havia encontrado antes o médico. Nunca pode lhe agradecer.

Schweitzer é o caso mais grave da noite. Vítima de um acidente de trânsito sofreu lesão cerebral e pode ficar com seqüelas. É tratado com extrema destreza. Em meio à vida que circula pelos corredores, Schweitzer trava uma batalha entre a vida e a morte com o esforço conjunto de salvação: médicos e enfermeiros na mesma missão.

À 1h da madrugada, sofre parada respiratória. O cirurgião geral Fábio Fraga toma a decisão: induzir ao coma para o cérebro parar de sofrer. O médico residente Rodrigo de Campos Lopes é incumbido de “entubar” o paciente. Colocar tubo na traquéia vai ajudá-lo a respirar. Os procedimentos são rápidos e terminam em 15 minutos. “O estado é gravíssimo”, diagnostica Fraga. O paciente está em coma, mas pelo menos respira. Mas há um outro problema. Aguarda que desocupe um leito na UTI. Os dez estão ocupados. Ele é o décimo primeiro paciente e precisa esperar.

20h30 – À beira da depressão

Ancorada no braço da filha, Neli da Rosa (43) só quer que a dor no abdômen passe logo. A pedra na vesícula lhe tira o fôlego. Mas o que incha de indignação a filha, Indiamara é ver a mãe assim e se sentir impotente. Neli, do Morro 25, é a típica vítima do SUS. A filha relata o drama da mãe que dia após dia frequenta o serviço de emergência para tomar medicamentos para apaziguar a dor. “O médico do posto do Bairro Montanha disse que é caso de urgência” Mas chegando ao pronto-socorro, ela toma soro e remédios e depois volta para casa. O que falta para solucionar o caso dela? Neli está na fila de espera da cirurgia eletiva. Como seu caso não tem risco de vida, ela tem de aguardar. Há 60 pessoas na sua frente para fazer a operação. “Há duas semanas eu não como de tanta dor”, relata enquanto é ministrado analgésico em sua veia. A filha se angustia. O medico Fábio Fraga pede calma à moça que cuida e acaricia a mãe e olha com desalento para lugar nenhum. Ela aguarda o medicamento fazer efeito. Cinco horas e meia depois, Neli e Indiamara saem do pronto-socorro. O relógio marca 2h30 da madrugada. A filha ampara a mãe. Lá fora, o breu. Um fio de esperança de que, pelo menos no sábado, a dor não machuque. Porque a depressão vem de mansinho. Está pegando Neli em doses homeopáticas, enquanto a cirurgia não vem. Neli é uma paciente engolida pelo sistema. E só tem a filha para ampará-la.

As filas são o carrasco do SUS. E Neli a vítima tradicional. “Ela está entrando em depressão e a gente não pode fazer nada”, diz o médico. Os exames dão normais, mas a vida dela está em volta de suas pedras. O SUS deveria extirpá-las. Mas o SUS virou a pedra no caminho.

21h – Diferença entre dor e risco de vida

O
Os médicos sabem que o paciente é vítima do sistema e que é no pronto-socorro que a impaciência do paciente estoura. Por isso, os plantonistas são os que menos têm qualidade de vida.O pronto-socorro é o ponto final. É como se fosse a beira do precipício tanto para o paciente quanto para o doutor, só que este último, como está de jaleco, tem que saber segurar a barra. Paciência para tratar o paciente. Nunca é fácil. Olhares zangados denotam o mau funcionamento do sistema. Em 12 horas, Fraga e sua equipe atenderam 30 pessoas. Destas, 15 poderiam ter sido assistidas por médicos de postos de saúde durante o dia. Mas elas não quiseram pegar filas e rumaram ao hospital.
O enfermeiro Daiton Vaz (27) define o drama pelo qual passa a equipe que vê a via-crúcis dos pacientes: “A minha dor é uma urgência para mim. A tua dor é urgência para você. Mas existe o risco de vida. Por mais importante que seja a dor, ela pode não incorrer em risco”.

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2h45 - A vida não é um relógio

Ninguém pode ser completamente errado no mundo. Mesmo um relógio parado consegue estar certo duas vezes ao dia. Mas a vida no pronto-socorro não é um relógio. Com 3,5 anos trabalhando na emergência, o enfermeiro Daiton Vaz aprendeu que a vida tem mais solavancos que estradas de chão. E ainda assim é possível ressuscitá-la. Em sexta-feira, tem festa, bebida em profusão e os acidentados chegam em procissão. Há todo tipo de ocorrências. A sociedade adoece por um mundo de fatores. Há tentativas de suicídio por ingestão de medicação. Parece que inconsciente coletivo funciona junto “Passam 15 dias sem nenhum caso e numa noite ocorrem três”, explica Vaz. “Às vezes a gente sai daqui com a cabeça enorme e não consegue desligar”.
O pronto socorro é uma grande vitrine da sociedade. As brigas familiares estouram no domingo a noite, após uma semana de trabalho. Existe uma apologia de que o Brasil é um povo alegre, mas as mães ficam com o coração aos pulos ao verem seus filhos saírem a noite, eles podem não voltar mais, pela violência ou pela morte em acidentes. O doutor dá boa noite.


7h30 – Ponto final


domingo, 1 de maio de 2011

Missão de paciência

A missão era passar 12 horas no Pronto Socorro. Doze horas é o período da jornada de um médico plantonista. Ele não tem um expediente de oito horas como todos os trabalhadores. As jornadas costumam ser de 12 ou mesmo 24 horas. Optamos por 12 porque tá de bom tamanho para duas jornalsitas cansadas como eu e a fotógrafa Lidiane Mallmann que aceitou de bom grado o convite para ficar comigo todo o tempo retratando tudo o que se passava dentro do serviço de emergência do Hospital Bruno Born.


A noite escolhida foi sexta-feira, por sugestão do coordenador do plantão, médico Fábio Fraga, um cara bacana, calmo e com uma equipe orquestrada, que sabe fazer todos os movimentos simetricamente calculados sem nenhum pavor. Essa história dos filmes, aquela correria histéria retratada nos anos 80, se não me engano na série Plantão Médico, é meio teatral.Nem dá para ter tanta correrria assim porque a maioria dos pacientes que estariam na sala de observação iriam infartar de susto. O jeito é manter a calma e Fábio Fraga treinou durante anos para manter a serenidade. Verdade seja dita, os enfermeiros e técnicos também. Eles são personagens que nunca aparecem como protagonistas nas histórias de salvamento, mas sua perícia é louvável. Esses sim ganham pouco: 900 reais por mês. Muitos enfrentam jornada dupla e chegam a trabalhar até 30 horas direto.
Mas bem, é tanta informação para contar, que logicamente não vai caber em uma reportagem, terei de fazer uma triagem das informações interessantes. Vou focar histórias de vida, gente aflita pela resolução de seu problema, medicos que nada podem fazer porque nao cabe a eles resolver o que o sistema nao resolveu. O sistema, ah, o sistema - é algo tão complicado, tão enigmático e tão simples. É um paradoxo que não se resume apenas ao Sistema Unico de Saúde. Estamos todos dentro de um sistema chamado Brasil, onde pouca coisa funciona para o usuário da saúde. As pessoas agonizam e o médicos (que ganham R$ 55 reais por hora) não querem mais serem plantonistas pela batelada de processos a que estão expostos, porque são o para-choque do sistema. Tudo reflete neles. Pessoas desgostosas, que esperam meses por uma cirurgia eletiva que o SUS deveria pagar, filhas apavoradas com a iminência da morte da mãe. Não é a pressão do trabalho que mata o médico, é a reclamação, a ineficiência do sistema.A impotência, estar de mãos atadas e ser culpado por isso.
Tem horas, que o médico deveria ser chamado de paciente. Porque tem que ter uma baita paciência com as pessoas alcoolizadas que chegam por volta das 5h da manhã. Elas balbuciam coisas incompreensiveis, muitas não querem ser medicados e demonstram impaciência em se manter ali para esperar o soro ou finalizar o tratamento. Ossos do ofício.