segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Genética não é destino

Na terça-feira 13  ganhei meu presente de fim de ano. Ela me veio em forma de história de vida e tinha tudo para ser um brado lastimoso de um destino inglório.  Mas foi como se a história de seu Decker me injetasse um gás, uma dose extra de endorfina natural ou oral. Um pai, um marido e um representante comercial, ele, o melhor personagem de 2011, eleito por mim, numa história tão contagiante que não pude deixar propagar pela redação inteira. “Que história incrível.”

Seu Decker não tem os dois rins e há um ano e oito meses não faz xixi. Quando me  confrontei com sua história, assoviei  num pio de descrença: o queeeeeeeee, não tem rim? Impossível. Como que os médicos nunca me disseram que uma pessoa poderia viver sem rim?. É crível que as pessoas vivam sem olhos, mas o pior cego é aquele que não quer ver. No caso, eu, uma criatura tapada na frente do seu Decker, com cara abobalhada questionando três vezes: o queeeeeee, o senhor não faz xixi?

Não faz não. Imediatamente me veio aquela sensação incômoda de ter vontade de fazer xixi e não poder. Imaginei-o segurando a urina por dois dias.  48 horas, até encarar a sessão hemodiálise para retirar três litros de água. Seu Decker emagrece três quilos toda vez.  Entra na sessão com 77 quilos e sai com 74.  É o peso seco. Uma vigilância eterna.  Seu Decker tem que cravar nos 74. É o reloginho da boa-saúde.

Ele tem uma doença esdrúxula que nem faço questão decorar.  Me detive no efeito que ela produziu no seu corpo. Seu rim cresceu tanto que chegou a pesar cinco quilos. O outro, quatro. Ao todo, nove quilos de rins.  Situados um de cada lado no segmento da coluna lombar, faziam um peso desgraçado.  Para seu Decker, era como se estivesse grávido de rins. Trigêmeos dissera ele.

Depois que tirou os órgãos reprodutores de urina, desinflou.  E teve de aprender a fazer xixi pelas veias.  A hemodiálise é seu vaso sanitário. Só que ele não pode ir até o banheiro e arriar as calças e fazer pipi. Precisa esperar 48 horas. E precisa esperar também um rim. Um, dois, três anos e o cadáver-solidário não vem. Por três vezes bateu na trave, mas outras pessoas foram escolhidas.

Seu Decker não é filósofo. Mas por um destino congênito aprendeu a compilar a frustração.  Ele extirpou a derrota junto com os rins.  E no lugar colocou doses maciças de treinamento mental. Seu Decker foi acometido por muito mais mazelas do que a maioria das pessoas, todavia, ele tem as feições e o ar mais saudável do que a maioria dos pacientes. A façanha de Decker não é viver sem rins. A façanha de Decker é viver sem agonia.

Quando a gente faz matéria de pessoas que precisam de transplante, aparece alguém em cadeira de rodas ou debilitado, com o rosto triste e olhar de paisagem. Seu Decker não tem olhar de paisagem, seu decker nem depende do governo para sustentar sua família e uma casa bacana em Estrela. Ele não se encostou na previdência social.

Os rins cresceram e ele continuou trabalhado.  Ele vendeu filtro carregando os dois rebentos involuntários dentro da barriga.  Uma gestação muito maior do que nove meses.  E depois ele retirou-os e continuou trabalhando. E em vez de lastimar que teria de passar nove horas por semana na hemodiálise, fez das sessões sua sala de aula. Seu Decker é grávido de entusiasmo, isso cirurgia nenhuma tira dele. Ele fez de seus pensamentos um reino, não uma jaula. Setenta por cento das doenças são curadas pela mente, me diz ele. Seu Decker, que tem nome de ave, é um Aristóteles moderno.  Enquanto muitas pessoas entendem que a felicidade é algo aleatório que nos é dado por circunstancias externas, os pensadores gregos relacionavam a atitudes corretas: felicidade depende de uma postura ativa. Não somos fantoches das nossas doenças ou humores.  A neurociências já diz que um dos segredos  da felicidade está na possibilidade de controlarmos nossas emoções negativas.  O que Decker nos deixa de presente é uma prova cabal de que a infelicidade pode ser controlada, enquanto ser feliz é algo que podermos aprender. Genes, portanto, não equivale ao destino. Que o diga seu Decker.

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