Um palco invisível, o Centro da cidade é a ribalta de personagens que latejam dentro dele, em paredes que não existem
Tormento e labuta, sonhos e luta. O Centro abriga 800 pessoas por quilômetro quadrado, mas a multidão está só na presença de si mesma. Enquanto a luz do sol banha a cidade, ruídos, descargas, buzinas, passos apressados, a diversidade está estampada num mosaico que ninguém vê: mas há personagens que evocam curiosidade, dor, comiseração ou sensação de identificação.
Julio Cesar da Cruz Gonçalves não é o Rei Midas, aquele que transforma tudo em ouro a cada toque. Mas possui o toque da graxa. Com 24 anos e uma educação que veio da rua - porque Julinho sabe: “Vivendo na rua a gente aprende um monte de coisa, tanto boas quanto ruins” - o engraxate com estampa de skatista cresce na profissão que elegeu ainda aos sete anos. Esfregando sapatos e botas, Julinho junta R$ 1,2 mil ao mês. “Tiro bem engraxando. Mais do que emprego fixo.” Junta-se ao salário o esforço com capinas, roçadas e lavagem de carros. Mas como todo empreendedor tem o carro-chefe do seu negócio, é na graxa que Julinho tem seu maior quinhão.
Julinho aboleta-se antes das 7h na Padaria Suíça. Fica aquartelado ali o dia inteiro esperando a clientela. E não espera muito. Nos primeiros minutos, começam a aparecer seus fregueses: médicos, advogados, empresários que antes de rumar ao escritório vão fazer o café-da-manhã. Julinho percebe a profissão do freguês pelo pé. “Se o sapato está bem ajeitado é um advogado, doutor, promotor ou juiz. Aquele que tem um mais velho é porque não tem condições de comprar sapato toda hora.” O preço é o mesmo para pobres ou para ricos: R$ 2,5 a engraxadinha. Para mulheres, geralmente se eleva. Explica-se: o gênero feminino adora botas com canos altos. Como necessita de mais cera, o valor dobra. Elas preferem a cor marrom, eles optam pelo preto. Sua freguesia se reveza entre esses dois tons. “Agora está saindo muito o incolor, para botas claras.” É na psicologia do sapato que Julinho tira o sustento da sua família. Com a labuta, sustenta mulher, filho e construiu a casa no Bairro Santo Antônio. É fácil pagar a Julinho. Mesmo quando não lustra calçados ele recebe moedas: R$ 1 ou R$ 2, gratuitos. Abre a mão e estende o braço: o ruído dos níqueis, acompanhado de um leve agradecimento: “muito obrigado”. No fim do ano, Julinho planeja comprar seu primeiro veículo. Poupa no banco para adquirir um Celta. “Estou fazendo a Carteira de Habilitação.”
No verão o movimento diminui porque as mulheres trocam as botas pelas sandálias. Mas o fato não chega a afetar o negócio de Julinho, que fideliza a clientela modernizando os métodos de engraxe. “Eu uso escova de dente. Passo nos cantos do calçado, lustrando parelho.”
Do promotor ao cobrador, a vida comum passa por cima da caixa de sapato do engraxate. É nessas idas e vindas que ele conquistou o carinho dos clientes da padaria. E dos donos também. Julinho tem a preferência do ponto. O estabelecimento é praticamente seu escritório a céu aberto. “Enquanto fico aqui, os moleques não incomodam. Nem os pedintes.”
Dono do pedaço, o rapaz se consolida no mercado. Diz que a “profissão” está em extinção. “Quando comecei, tinha mais de 20 engraxates. Alguns pararam, outros foram presos e tem aqueles que acham feio.” Para Julinho, “feiúra” é uma palavra apagada do seu vocabulário de Ensino Fundamental. Ainda mais se a função lhe traz apreço. O sol ainda não se põe quando o engraxate encerra as atividades, às 17h. Guarda a caixa em um local secreto e ruma para o supermercado. É hora de comprar mantimentos e levar para a família, no Santo Antônio. Embarca no ônibus com o itinerário traçado para o dia seguinte: voltar à padaria, para cuidar dos calçados de doutores e senhoras.
Julinho: Doutores e advogados engraxam pela manhã
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