Uma pesquisa de aula resultou em uma estatística que se transformou em um sistema de alerta para enchentes. O Vale escuta Jasper mais do que órgãos oficiais. Seu telefone toca sempre que o tempo mostra seu temperamento mais forte
Na infância todos os sonhos estão distantes e as tragédias são amenizadas pelo raciocínio infantil e, lógico de que tudo passa. Na adolescência de Edelbert Jasper (56), a invasão do rio sobre as estradas de Colinas – cidade de 2,6 mil habitantes no Vale do Taquari – era evidência de que não haveria aula. Ele então se regozijava por poder ficar em casa.
Na maturidade, aos 56 anos, o matemático Jasper sabe: o rio é temperamental e as tragédias se sucedem sem o olhar vigilante do homem. Mais de meio século de observação comprovando a oscilação da natureza lhe rende o título de “Homem das Águas”. Não há um certificado que comprove a honraria, mas as previsões certeiras de Jasper – de que quando o rio se eleva até a cota 24 haverá enchente na cidade - se espalham à boca pequena pelo rincão.
O Rio Taquari dá vida a um vale de 320 mil habitantes. Sempre esteve no foco de visão de Jasper, mesmo sem querer. O garoto que vibrava com as cheias na época de estudante se tornou universitário – e fez uma conexão do rio com os números. Bancário envolvido com a comunidade, meditava sobre as enxurradas enquanto finalizava a faculdade. Intrigava-o a invasão das águas no ginásio de esportes, no salão e nas casas sem que alguém pudesse dar um alerta em um espaço de tempo suficiente para impedir a destruição.
Lembranças de 22 anos irrompe em sua mente: “Escutei pessoas gritando apavoradas porque elas não sabiam que a água chegaria”. Uma vã tentativa de fugir de uma cheia que ninguém avisou que viria.
Há mais estatística na natureza do que supunha Jasper na época. Ele descobriria sete anos depois dessa enchente que seu olho salvaria os bens de muita gente, mas antes, enfrentaria um período de ceticismo.
Jasper desenvolveu um sistema de alerta que se fortaleceu como o socorro da região. A ideia ganhou forma na faculdade de Matemática. Para receber avaliação em um trabalho em Estatística, Jasper embarcou no mundo dos cálculos. Escolheu o rio e seu enigma para decifrar os miasmas das cheias. Escrutinou o tempo de 1977 a 1997 e em uma linha de tempo de 20 anos, relacionou a quantidade de chuva com a cota do rio. Comparou a chuva em três cidades-chaves – Vacaria, Passo Fundo e Lagoa Vermelha. Com base no volume que caía nesses municípios, descobriu o número mágico – 70 – que representaria precaução ou destruição. “Descobri que a partir da média de chuva de 70 milímetros em toda bacia do rio Taquari-Antas, a cheia pode acontecer.” Jasper celebrou a descoberta de uma forma muito própria. Nos períodos chuvosos, começou a interagir com os ribeirinhos: “Vamos sair de casa porque a chuva está chegando e o rio vai invadir.”
Uma voz no trovejar do tempo. A voz de um homem contra um rio que estava longe de sair do leito. Como acreditar? A voz murmurava o aviso nas casas próximas ao campo de futebol, área mais baixa de Colinas. A voz ia até ao homem da oficina, batia na loja ao lado. A voz ligava para o prefeito. Mas a cidade tinha seu próprio sistema de controle. A voz era inaudível.
Mas enquanto a tempestade combalia o agricultor, o tempo cronológico favoreceu o matemático. Com o tempo, os habitantes começaram a acreditar.
Na cadeira de Estatística, pela análise do comportamento das enchentes, Jasper recebeu nota 9,5. Talvez hoje o mestre o avaliasse como tarefa nota dez, diante do efeito de sua pesquisa. Antes o Vale conseguia antever inundações em seis horas. Os cálculos e observações de Jasper anteciparam as previsões em até 30 horas. Assim, o povo ribeirinho ganhou um dia a mais para retirar os móveis de casa e ser alojado pela Defesa Civil em abrigos.
Graças a uma cadeira de Estatística, ele virou vigilante do Vale. Os números o levaram a “chefe” do seu município. Em 2000, venceu as eleições municipais com 56,89% dos votos e reeditou a vitória em 2004, com 53, 67%. Mas seu número favorito sempre foi o 3. É uma predileção mística, que faz Jaspe emudecer.
Durante oito anos, o matemático acumulou as funções de prefeito e homem do tempo. Seu telefone é de fácil acesso. Nenhum contribuinte de sua cidade se intimidava em ligar, mesmo tarde, para fazer a pergunta recorrente: “Prefeito, até quanto o rio vai subir?”.
O rio é cheio de mistérios porque a vida é líquida e o homem, um ser que jorra emoção. A ciência da estatística é exata, mas da água não. Por isso, além dos números, o conhecimento empírico é o grande parceiro de Jasper. Tanto tempo vendo os pingos de chuvas se transformarem em lagoas e dissolver vidas lhe reforçou a intuição. Água e números, uma previsão que fez Jasper salvar dez mil pares de sapatos certa feita. Tudo porque o homem da loja acreditou no matemático.
A ciência de Jasper é humanizada. A enchente tem nome. Se atingir a cota 27, inundará a oficina do Cláudio. Se chegar a 39, afetará a loja da curva do município. Se o rio começar a subir, o telefone não para. Na enchente de julho, 40 anônimos buscavam sua orientação, queriam saber as cotas em Lajeado, Estrela e Colinas. “Eu não conheço as pessoas. Mas há algumas que sempre ligam.” Jasper aprendeu a identificar o som. De Estrela, a voz familiar de uma senhora sem nome lhe diz que está cotado para meteorologista do povo. “Me diga, seu Jasper, eu tenho que ir para casa?” Jasper então pede a cota em que sua casa está, verifica nas suas estatísticas e avisa: “Dá um jeito de ir para casa e tirar suas coisas. A enchente vem vindo.”
A alguns anos, Jasper importou uma pequena estação meterológica da Suécia. O equipamento portátil mostra a velocidade e direção do vento, intensidade da chuva, temperaturas. O pluviômetro mede a quantidade da chuva e uma biruta relata a direção do vento. Mas é a observação no rio e no tempo que consegue uma tarefa de Noé: sem arca, salva o povo ribeirinho. Jamais lhe passou pela cabeça estivesse exercendo um tipo de trabalho voluntário. O tempo, voluntarioso, evoca em Jasper outro tipo de sentimento: paixão.
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