segunda-feira, 2 de abril de 2012

O Vale das meias-palavras



Eu sou louca?” Perguntei para minha colega Susi nesta quinta-feira de manhã. Ela pensou e disse: “Tu é sincera. Ninguém tem coragem de dizer as coisas que tu diz.” Eu estou sempre perguntando se sou louca para alguém. Só não posso perguntar para o meu texto porque ele não fala. Ele telefona. É assim mesmo, quando coloco alguma coisa com um olhar diferenciado na matéria, meia dúzia gosta, seis não gostam. Geralmente são os seis que estão relacionados a matéria.  Fugir do olhar domesticado é ver um fato de ângulo diferente, fazer uma pergunta que o entrevistado não está acostumado a ser inquirido. Não sei se isso fere, mas espanta.


Existe no Vale do Taquari a Síndrome das Meias-Palavras. Oxalá fossemos iluminados a ponto de não ter nada a dizer e assim não faríamos o mundo perder tempo. Mas temos sim algo a dizer. Só que só dissemos metade. Porque a outra metade não pode ser dita por isso ou por aquilo ou por aquele outro. Porque, “eu não quero me comprometer.”
O jornalista fica espremido diariamente entre o leitor que tem algo a falar e a fonte oficial que só pode falar aquilo que ela quer. Com um salário base de R$ 1,333, nós – jornalistas que estudamos quatro anos na faculdade para aprender que somos porta-voz e fiscalizadores da sociedade - estamos comprimidos de todas as formas. No bolso e com as fontes (os entrevistados). Porque é sempre assim: João liga para o jornal para reclamar do alarido que os jovens fazem perto da casa dele. Mas João não quer seu nome no jornal. “Não quero me comprometer”.
Maria aciona o jornal para reclamar do buraco da rua, da praça que está sem verde, dos ratos que invadem o coreto. Maria quer porque quer uma solução rápida. Mas ela não quer se comprometer, porque afinal ela é amiga dos secretários, do fiscal, do sargento.
Nós tentamos resolver porque somos porta vozes da sociedade. O secretário, vereador, major ou coordenador se irritam com nossas perguntas. E quando responde, é sempre pela metade: “não coloca isso porque não pega bem.”
Esta semana, por duas vezes, autoridades de órgãos oficiais me repreenderam sutilmente diante de matérias que fiz porque eu as elaborei por um ângulo diferente. “Isso você não deveria ter perguntando  ao entrevistado porque é bom deixar quieto.”
Há poucos dias, na inauguração de um prédio, estava entrevistando um morador quando o assessor de imprensa se interpôs entre o morador e eu. Me senti coagida, numa visível tentativa de me vigiar para me desestimular das perguntas.
Pô, se só temos de colocar o que as fontes dizem, se  temos de colocar o bonito, o belo e o que está diante dos olhos, o jornalista do Vale do Taquari não precisa ser testemunha ocular da história. Não precisa ter senso crítico. Aliás, ter senso crítico é ser uma pedra no sapato. Estou sabendo que sou persona non grata, mas não me importo. Meu compromisso é comigo mesma, porque eu sou leitora. E como leitora de jornais, revistas e televisão, sou critica quanto aos meus colegas daqui, do sudeste ou do nordeste. Quero que eles não tenham preguiça nem medo de dizer as coisas. Eu sou paga para ser chata. Jornalista que não é chato é legal para a fonte mas é um pé no saco para o leitor.


Esta semana morreu Millôr Fernandes. Senti muito mais do que a morte de Chico Anísio. Millôr tem um quê de Nelson Rodrigues. Ambos foram muito produtivos em vida. Que tristeza saber que nunca mais vamos ter repertório novo de Millor, ainda bem que ele fez e disse um monte de coisas. Que triste saber que há muito tempo não temos algo novo de Rodrigues.Mas suas frases são impagáveis e mais atuais do que nunca. Esta é para todo e qualquer egresso que ousar fazer   vestibular de jornalismo e para ser utilizada em toda sua vida de repórter:  

Nós, da imprensa, somos uns criminosos do adjetivo. Com a mais eufórica das irresponsabilidades, chamamos de "ilustre", de "insigne", de "formidável", qualquer borra-botas.”

Não fui eu quem disse. Foi Rodrigues. Eu sei que vai ter gente se irritando com essa crônica. Mas e daí? “A grande vaia é mil vezes mais forte, mais poderosa, mais nobre do que a grande apoteose. Os admiradores corrompem." Nelson Rodrigues me salva da zona de conforto.

Nenhum comentário: