sexta-feira, 27 de julho de 2012

A vida é um brinquedo da morte


O que é que a vida é? A vida é uma menina ingênua que não sabe que não tem vontade própria. Cheia de manias, ela pensa que escolhe e se acha dona de si. Se julga grandona.


 Como sou importante nesse mundo. A vida não percebe que ela é só um brinquedo da morte. A morte, essa sim a grande mãe, matrona do Universo, finge que dá o poder à vida. Na verdade ela dá corda. Ela diz assim: “corre, corre mais um pouco. Eu te dou uma vantagem, pode sair acelerado que ainda assim eu te pego”. E quando a gente acha que ta ganhando todas as corridas, vem a morte e tasca a vida da gente.  A morte é a grande vitoriosa.  A morte é o Michael Schumacher  - e mesmo o maior vencedor da história da Fórmula 1, um dia será engolido pela morte. Desde o nascimento esse é o nosso destino. “A morte brinca um pouco com sua presa antes de comê-la”, disse o filósofo Arthur Schopenhauer.
Na  maca do IML sábado de manhã, quatro corpos. Três de adultos de um lado, o da menina de 8 anos, na outra maca. Sozinha.  O rosto sereno, a tez tranquila. O braço estendido para o lado. Eduarda. Eu a olhei e comecei a chorar, embora os corpos adultos estivessem machucados. Eduarda era magrinha. Sabe a criança quando dorme com a feição relaxada depois de um dia cheio de brincadeiras? Era assim que Eduarda estava. A boca dela não estava contraída, era mais ou menos daquela forma que Da Vinci pintou o quadro da Mona Lisa. Não está sorrindo, nem triste, nem nada, mas você sente por intuição que ela podia estar pensando algo que lhe desse satisfação. Talvez uma travessura, talvez as férias que iriam chegar. Eduarda ficaria uma semana longe de sua casa, porque como no Natal a família não tirou folga, esta seria a chance.  A morte interrompeu Eduarda enquanto ela sonhava. Ao que parece, na posição da maca do IML, ela estava dormindo quando o acidente aconteceu. Ela morreu num veículo Gol. Mas o gol foi da morte.  Eu perguntei as pessoas que lidam com a morte dentro do IML como elas reagem a esse tipo de episódio. Elas disseram que quando é criança, sempre comove.
A família das vítimas estava fora do IML, esperando a liberação dos corpos. Me perguntaram se eu os vi. Eu fui lacônica, disse que sim e só isso. Como é que eu iria dizer que não eram as lesões e os machucados que me fizeram lacrimejar? Na verdade, foi o contrário disso, a serenidade de Eduarda, sem nenhuma lesão aparente. Eu pelo menos não vi.  Eu acho que a morte quis protegê-la ali nesse instante. O futuro dela foi interrompido, mas ela não precisava ser destroçada por uma carreta que aparece mortífera na curva da morte. É assim que o local em que ela morreu é chamado em Pouso Novo. Curva da Morte. Eduarda morreu na curva porque a morte é uma gulosa.
Vivemos inconscientes e desatentos. Schopenhauer diz que nossa atenção desperta no mesmo instante em que nossa vontade encontra um obstáculo e choca-se contra  ele. Uma carreta foi o obstáculo. Ou talvez o Gol tenha sido o obstáculo da carreta. Quando vi Eduarda ceifada da vida, me dei conta de quão desatentos vivemos. Depois sai do IML e o burburinho do mundo me engoliu: gente que fazia compras, gente que atravessava a rua e algumas quadras adiante, uma multidão eufórica que se juntou para inaugurar algum tipo de estabelecimento. Aí eu vi que a carreta trombou em mim. Eu despertei do sono da vida, mas talvez por duas horas.Porque talvez na segunda-feira, quando esta crônica estiver sendo publicada, eu vou voltar a viver inconsciente. Como se a morte fosse coisa distante. Mas hoje, eu sei que ela está me olhando, sorrateira, planejando o meu futuro. Eduarda me disse isso. 


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Há coisas de que um escritor se regozija profundamente, como quando escreve e ve o fruto de seu pensamento se sacralizar. Recebi um email que me fez bem. Foi minha megasena da sexta-feira. Um email de Los Angeles, de alguem que me leu lá e gostou do que eu disse. Denis.
"Vi o comentário que fizeram da matéria  que tu escreveu titulada A vida é um brinquedo da
morte.  O titulo despertou minha curiosidade e consegui achar a matéria e lê-lá, honestamente à achei  fantástica ao ponto de querer guardar uma copia pra mim. Lamentavelmente isto não foi possível  de fazer e é por isso que estou te escrevendo para ver se queres e se podes me mandar una copia desta ."
 

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