terça-feira, 8 de maio de 2012

Que grilo falante temos na cachola?



O meu grilo falante nunca foi carola: quando eu fazia alguma coisa fora do eixo, não ficava em cima de mim, “isso é errado, isso é errado”.  Em parte porque nunca fiz nada de tão errado assim, só loucuras que a sociedade julgava rebeldia. Já tomei banho no chafariz no Unicshopping e não estava chapada, nem bêbada. Creio que sempre fui louca de cara. E isso sempre foi bom porque nunca botei meu dinheiro fora com alucinógenos.. 

Hoje, me acomodei em casa. Há anos não vou a baladas e as minhas transgressões são sintoma da minha paixão pela escrita: eu furto adoidadamente canetas.  Me faço de salame e roubo na cara dura. Não pode ser qualquer caneta, dou preferência às de laboratórios farmacêuticos. Então, a minha mira são as farmácias. O pessoal onde frequento fica atento e as  retira ao me ver entrar.  Vez ou outra esquecem no balcão e eu nhac, já era.
Quando roubei a primeira caneta, meu grilo falante falou alto: isso é errado. Me lembro como se fosse hoje. Fui entrevistar um médico em uma clínica. Ele saiu por alguns instantes da sala e eu vi aquela canetinha tão linda, roliça e fofa. Peguei. Mas como estava de consciência pesada, coloquei uma bic velha no lugar. Depois disso foi mais fácil. É sempre assim. Os assassinos também são assim. Os ladrões.  Seja para pegar canetas ou para matar, não interessa, quando você atravessa o portal, você rompe suas barreiras.
Estamos derrubando todas as barreiras, subornamos o nosso grilo falante. Não tem mais nenhum para gritar igual aquele do Pinóquio: não faça isso, você está errado. Somos os filhos da era do “liberou geral”.
Uma  das fontes que mais aprecio entrevistar é o psicólogo Sergio Pezzi. Sempre aprendo com ele, porque ele sempre tem muito a dizer e isso me surpreende porque estamos vivendo num tempo em que mesmo os entrevistados não dizem nada. Possuem um diálogo vazio. Não foram poucas as vezes em que eu agradeci a entrevista e pensei: “tá, mas e aí, o que ele quis dizer com isso? Ele não disse nada”. Me sentia um  engodo por muitas vezes, encher de nada uma reportagem.  Por fim, acabei percebendo que muitas vezes, nem o entrevistado sabe como dizer algo que ele sente.
Pezzi trabalha com adolescentes infratores. . Na sua última palestra, disse umas coisas que me acenderam uma luzinha. Fiquei revolvendo durante dias.  Disse que nós somos formados por palavras. Quando a criança nasce são os pais que dizem para essa criança o quanto é querida, jeitosa e valorizada. É isso que  vai transforma-la num ser humano. As palavras são nossa segunda pele, e servem de proteção social. Muitas vezes nos preocupamos com a nutrição, mas não com nossa pele simbólica que é um fator protetivo.
O que está acontecendo hoje é que vivemos no mundo das imagens. Se adotou a ideia de que uma imagem vale mais do que mil palavras. Compartilhamos fotos e Power point pelo Facebook. Temos preguiça de ler algo com mais de 15 linhas.  Atrofiamos tanto o vocabulário que não temos mais palavras para definirmos como nos sentimos.

Pezzi alerta que ao nos faltar palavras, tendemos a agir por impulso. Então  começamos a pulverizar a terra com sintomas modernos.  O sintoma nunca aparece de uma forma isolada, tem a ver com o mundo e com a época em que se esta vivendo.
Queremos uma boa dose de droga para viver uma experiência sensorial e não afetiva. “Afinal, meu, eu to a fim de sentir e não de falar. Pô cara, que irada essa vibe. Se liga na parada meu. Muito louco”
Queremos uma experiência com o objeto que está entre mim e a pessoa da frente. E o que tem entre o João e a Maria é o copo. ‘O que conecta as pessoas hoje é o conteúdo das garrafas e não a conversa”, frisa Pezzi.
Esse super eu contemporâneo, criado com a ideia de que é obrigatório ser feliz sempre, está nos levando a falência.  Vivemos relacionamentos de bolso, nunca tatuamos tanto o corpo quanto agora, nos reunimos nos postos das esquinas:  trocamos a teve, o carro e o celular.  Se neguinho diz pra mim que LCD é mais cool que aquele “tubão” antiquado, ele tá certo.  Eu quero uma e vou comprar em 24 prestações porque meu supereu quer mais imagens de sucesso e a novela me diz que se eu usar o brinco da Leona eu serei muito mais bonita.
Raul Seixas já esmerilhava na ironia quando cantou há 45 anos, na época em que as propagandas de cigarro eram liberadas.” Eu procurei fumar cigarro Hollywood que a televisão me diz Que é o cigarro do sucesso.Eu sou sucesso (eu sou sucesso!) “. Quando eu leio Clarice Lispector, fico pasma de o quanto ela utilizava palavras. Transmitia em suas crônicas todo o seu tormento interno, as suas viagens não eram com LSD, mas através de uma verborragia íntima. Ela dizia: Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento. Eu concordo com ela. E vou continuar escrevendo palavras com minhas canetas furtadas. Eu penso com cadernos ao lado da minha cama, nunca por computador. Se for para o mundo reaprender a verbalizar, deem-nos canetas.  Chega de brioches.

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