sábado, 7 de maio de 2011

Paciência no mundo da emergência

A aflição e a pressa dentro de um mundo em que ninguém quer entrar, mas que engole usuários que padecem na fila. O drama de pacientes e médicos que são utilizados como para-choque de um sistema que gera reclamações. O SUS. A vida e a morte dentro do pronto-socorro.

A equipe do jornal O Informativo atravessa a noite na emergência do Hospital Bruno Born e acompanha passo a passo a rotina de um médico plantonista.

A missão inicia às 19h30 da sexta-feira. Enquanto os trabalhadores voltam para casa e se preparam para o fim de semana, o médico Fábio Fraga (41) enfrenta mais um plantão de 12 horas. Ele é o coordenador do setor de emergência. Dará retaguarda a acidentados,feridos e alcoolizados. A sexta-feira é longa e por estatística, promete movimentação, a juventude sai para as baladas, ocasionando demanda no serviço. Esta é a sétima noite consecutiva de seu plantão. Durante a semana as horas de sono são escassas, mas ele tem de se manter alerta. Ainda não sabe, mas daqui a duas horas terá de salvar da morte um homem com água no pulmão.

Fraga é um “rato” de hospital. Na faculdade freqüentava casas de saúde perscrutando doenças e pacientes, assistia à série Plantão Médico e almejava ser um deles. Passou em uma universidade federal. Durante anos foi para as aulas com o mesmo sapato, os recursos eram escassos, mas o foco estava na futuro. Ao se formar, vestiu a beca e passou a ser chamado de doutor. Há dois anos, vara as noites no Hospital Bruno Born.

Enfermeiros, médicos e pacientes fazem parte de um sistema complicado e paradoxal que determina ter paciência dentro de uma emergência., que não se não se resume apenas ao Sistema Único de Saúde. Está dentro de uma conjuntura chamada Brasil, onde pouca coisa funciona para o usuário da saúde.

No país, pessoas agonizam esperando tratamentos. Em Lajeado médicos da emergência recebem R$ 55 reais a hora para atenderem no pronto-socorro mas não querem ser plantonistas pela batelada de processos a que estão expostos. O sistema reflete neles: Pessoas revoltadas que esperam meses por uma cirurgia pelo SUS e filhas apavoradas com a excruciante dor da mãe estão dentro do enredo. Não é a pressão do trabalho que aflige os médicos. Eles aprenderam na faculdade a trabalhar sob pressão. Mas a ineficiência do sistema chega a ser indecente. A impotência de estar de mãos atadas e de ser julgado culpado por isso, aflige os profissionais. A vida dentro do pronto-socorro é marcada pela frustração de médicos e pacientes.

19h30 A morte dá entrada

Pelos corredores do hospital, o médico Fábio Fraga, encontra tempo para filosofar sobre a vida e a morte e utiliza a tecnologia do iPhone para ler artigos médicos na internet e interagir em redes sociais. Apesar da popularidade na internet – Fraga tem 1.222 amigos no Facebook - o ciclista Lauro Schweitzer (56) que está na cama da emergência jamais havia encontrado antes o médico. Nunca pode lhe agradecer.

Schweitzer é o caso mais grave da noite. Vítima de um acidente de trânsito sofreu lesão cerebral e pode ficar com seqüelas. É tratado com extrema destreza. Em meio à vida que circula pelos corredores, Schweitzer trava uma batalha entre a vida e a morte com o esforço conjunto de salvação: médicos e enfermeiros na mesma missão.

À 1h da madrugada, sofre parada respiratória. O cirurgião geral Fábio Fraga toma a decisão: induzir ao coma para o cérebro parar de sofrer. O médico residente Rodrigo de Campos Lopes é incumbido de “entubar” o paciente. Colocar tubo na traquéia vai ajudá-lo a respirar. Os procedimentos são rápidos e terminam em 15 minutos. “O estado é gravíssimo”, diagnostica Fraga. O paciente está em coma, mas pelo menos respira. Mas há um outro problema. Aguarda que desocupe um leito na UTI. Os dez estão ocupados. Ele é o décimo primeiro paciente e precisa esperar.

20h30 – À beira da depressão

Ancorada no braço da filha, Neli da Rosa (43) só quer que a dor no abdômen passe logo. A pedra na vesícula lhe tira o fôlego. Mas o que incha de indignação a filha, Indiamara é ver a mãe assim e se sentir impotente. Neli, do Morro 25, é a típica vítima do SUS. A filha relata o drama da mãe que dia após dia frequenta o serviço de emergência para tomar medicamentos para apaziguar a dor. “O médico do posto do Bairro Montanha disse que é caso de urgência” Mas chegando ao pronto-socorro, ela toma soro e remédios e depois volta para casa. O que falta para solucionar o caso dela? Neli está na fila de espera da cirurgia eletiva. Como seu caso não tem risco de vida, ela tem de aguardar. Há 60 pessoas na sua frente para fazer a operação. “Há duas semanas eu não como de tanta dor”, relata enquanto é ministrado analgésico em sua veia. A filha se angustia. O medico Fábio Fraga pede calma à moça que cuida e acaricia a mãe e olha com desalento para lugar nenhum. Ela aguarda o medicamento fazer efeito. Cinco horas e meia depois, Neli e Indiamara saem do pronto-socorro. O relógio marca 2h30 da madrugada. A filha ampara a mãe. Lá fora, o breu. Um fio de esperança de que, pelo menos no sábado, a dor não machuque. Porque a depressão vem de mansinho. Está pegando Neli em doses homeopáticas, enquanto a cirurgia não vem. Neli é uma paciente engolida pelo sistema. E só tem a filha para ampará-la.

As filas são o carrasco do SUS. E Neli a vítima tradicional. “Ela está entrando em depressão e a gente não pode fazer nada”, diz o médico. Os exames dão normais, mas a vida dela está em volta de suas pedras. O SUS deveria extirpá-las. Mas o SUS virou a pedra no caminho.

21h – Diferença entre dor e risco de vida

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Os médicos sabem que o paciente é vítima do sistema e que é no pronto-socorro que a impaciência do paciente estoura. Por isso, os plantonistas são os que menos têm qualidade de vida.O pronto-socorro é o ponto final. É como se fosse a beira do precipício tanto para o paciente quanto para o doutor, só que este último, como está de jaleco, tem que saber segurar a barra. Paciência para tratar o paciente. Nunca é fácil. Olhares zangados denotam o mau funcionamento do sistema. Em 12 horas, Fraga e sua equipe atenderam 30 pessoas. Destas, 15 poderiam ter sido assistidas por médicos de postos de saúde durante o dia. Mas elas não quiseram pegar filas e rumaram ao hospital.
O enfermeiro Daiton Vaz (27) define o drama pelo qual passa a equipe que vê a via-crúcis dos pacientes: “A minha dor é uma urgência para mim. A tua dor é urgência para você. Mas existe o risco de vida. Por mais importante que seja a dor, ela pode não incorrer em risco”.

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2h45 - A vida não é um relógio

Ninguém pode ser completamente errado no mundo. Mesmo um relógio parado consegue estar certo duas vezes ao dia. Mas a vida no pronto-socorro não é um relógio. Com 3,5 anos trabalhando na emergência, o enfermeiro Daiton Vaz aprendeu que a vida tem mais solavancos que estradas de chão. E ainda assim é possível ressuscitá-la. Em sexta-feira, tem festa, bebida em profusão e os acidentados chegam em procissão. Há todo tipo de ocorrências. A sociedade adoece por um mundo de fatores. Há tentativas de suicídio por ingestão de medicação. Parece que inconsciente coletivo funciona junto “Passam 15 dias sem nenhum caso e numa noite ocorrem três”, explica Vaz. “Às vezes a gente sai daqui com a cabeça enorme e não consegue desligar”.
O pronto socorro é uma grande vitrine da sociedade. As brigas familiares estouram no domingo a noite, após uma semana de trabalho. Existe uma apologia de que o Brasil é um povo alegre, mas as mães ficam com o coração aos pulos ao verem seus filhos saírem a noite, eles podem não voltar mais, pela violência ou pela morte em acidentes. O doutor dá boa noite.


7h30 – Ponto final


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