segunda-feira, 6 de junho de 2011

A subvida na Praça da Matriz

Quando chega dezembro, a Praça da Matriz recebe decoração natalina e eventos que enaltecem a solidariedade do período. Os mendigos então são retirados para não denegrir a cena, as luzes e o espírito da época.  São tocados embora pelos passantes. Em algumas ocasiões, as assistentes sociais tentam dissuadi-los de morar no coreto. Recomendam outro local menos evidente, nada que estrague um dos cartões-postais da cidade. Casais que perambulam pelos becos juntos, preferem o açoite do frio da rua do que a separação geográfica. Eles também amam e talvez este seja o sentimento que os mantém vivos, apesar da vida errante.  
 É a subvida urbana, escancarada no coração da cidade, uma sinopse moderna de pessoas afogadas com a corda da discriminação. Eles não têm voz, porque são bêbados e drogados. Subverteram a vida deslizando para o precipício. E por transgrediram regras éticas e morais, estão jogados no depósito da sociedade. Muita gente os chama de “vagabundos”. Poucos sabem a história por trás da miséria.

A queda de Rafael
Rafael tem 30 anos e está num estado deplorável. Casaco sujo, faltam-lhe dois dentes e tudo que tem cabe num saco plástico. Há dois anos ele e a companheira, Gislene moram na rua.  Rafael não quer ser internado sem a companhia da esposa. Da mesma forma, não quer ir para abrigos para dormir longe de Gislene. Eles decidiram afundarem-se juntos porque não há um abrigo para casais.  Quando estava no auge da profissão de vendedor, recebia R$ 4 mil mensais de comissão. Mas o vício lhe surrupiou as oportunidades. O filho foi a vítima que foi dada para a adoção e  Gislene é a parceira que lhe ajuda a catar comida nas latas de lixo. A sociedade é a mão que não salva. Só julga, discrimina e rebaixa. “Eles pedem para a gente sair da praça. Prá deixar o lugar limpo e bonito. Eles querem é trocar o lixo de lugar.”

Ajuda de fariseu
Altair Gaspar mora há 30 anos na rua, desde a adolescência é alcoolatra. Palavras dele: "o preconceito é pior que a ajuda. A ajuda deles é a ajuda de fariseu. Não é uma moeda que vai resolver o problema. A gente quer atenção. Falta dignidade. A gente não é bicho."
Altair chorava ao dar a entrevista:"a gente quer atenção"
Palavras da vida real. De um excluído, sujo e atirado, de um homem que ainda tem a sensibilidade de chorar, do alto dos seus 45 anos de vida esfarrapada. A realidade é um soco no estômago, diferente daqueles que já foram espalmados na face de Altair. “Muitas vezes a gente já foi acordado daqui da praça a chutes e coice. Eles queriam que a gente fosse embora. Queriam deixar a cidade bonita.”
Altair foi assaltante e durante 20 anos cumpriu pena. Em 2007, saiu da jaula para receber o sol. Seria um recomeço. Mas não foi. Ele não quer mais furtar, roubar ou transgredir porque não suportaria enfrentar o cárcere novamente. Assim, partiu para a esmola. São poucos os que realmente lhe estendem a mão: R$ 1 mil reais não redimiriam Altair.  Na imundície do coreto da praça, o poema de Manoel Bandeira deveria estar exposto em letras garrafais: “O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem”

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